sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

CID 11 e a visão de uma autista


Com a mudança para o CID 11, todos os autistas agora possuem o diagnóstico de Transtorno do Espectro do Autismo. Dois dos diagnósticos famosos que agora não existem mais de forma separada são o autismo infantil e a síndrome de Asperger. 

Há quem tenha visto a mudança de forma predominantemente positiva ou negativa, mas o argumento utilizado, muitas vezes, denuncia um problema que muitos autistas chamam de "supremacia aspie". 

Uma pessoa considerada supremacista aspie é alguém muito apegado ao diagnóstico de Asperger por achar que é uma forma mais evoluída da humanidade. 

Muitas vezes, é um mecanismo de defesa para alguém que foi muito rejeitado durante a vida sem saber o porquê, mas é um discurso que fere muito os outros autistas. Isso ocorre porque os supremacistas aspies não querem fazer parte do mesmo grupo em que também estão pessoas que, segundo eles, não têm suas preciosas qualidades, como QI alto e grande habilidade de discursar sobre um tema: os autistas. Dessa forma, estão muito inconformados com o desaparecimento do seu diagnóstico, que agora faz parte do TEA. 

O grande problema disso é a exclusão dos autistas com maior necessidade de suporte, como se orgulho autista e inclusão na sociedade fossem adequados só a alguns autistas, mas não a outros. 

Sabemos que autistas que demandam maior suporte são os que mais necessitam disso, pois a grande tendência é serem deixados isolados em casa, sem receber o apoio adequado ou uma forma de se comunicar com as pessoas sobre suas necessidades, ideias e desejos. São os que mais sofrem com a culpa do autismo por todos os problemas que eles e suas famílias passam no dia a dia, assim como os mais propensos a irem parar nos manicômios e sofrerem choques elétricos como punição nessas instituições. 

São eles que são usados quando alguém quer se sentir melhor com a própria vida ou quando querem dizer a alguém desabafando sobre a vida que ela não é tão ruim assim. "Pelo menos você não é aquela pessoa". Só que "aquela pessoa" não está alheia ao mundo e percebe muito bem todas as exclusões que passa junto a sua família. São os que mais sofrem com os estereótipos e abuso também. 

Os supremacistas aspies compram e reproduzem o discurso de que ser um autista com maior demanda de suporte é uma condenação, ao passo que querem respeito à própria existência.

Apegam-se a nomes de grandes inventores especulados "autistas de alto funcionamento" como forma de justificar que a condição deles vale a pena existir, mas sempre divulgam a dos demais autistas como algo terrível. Além disso, dão muito valor ao número do QI e a habilidades de fala. 

Muitos autistas não falantes são erroneamente diagnosticados com deficiência intelectual porque os métodos de avaliação não são capazes de avaliar a compreensão de alguém que não fala ou não consegue demonstrar da forma esperada o que entende. 

Isso é péssimo porque, na deficiência intelectual, existem dificuldades acadêmicas que exigem adaptações, há um processo mais lento de aprendizado etc, mas, se a pessoa não tem DI e não consegue demonstrar que está aprendendo num ritmo mais rápido, ela vai ser mantida numa sala em que o conteúdo ensinado está inadequado ao seu funcionamento, sendo subestimada e impedida de acompanhar os colegas em classes regulares.

O Ido Kedar, por exemplo, autista nível 3 de suporte e escritor, passou anos de sua vida sendo obrigado a sentar numa mesa com um profissional que ficava sempre no mesmo bê-a-bá que ele já sabia muito bem. Imagine só isso! Se não fosse a comunicação alternativa e os pais terem acreditado nele, ele ainda estaria lá. 

Muitos autistas possuem sim DI, mas isso é algo que precisa ser avaliado direito e com muita cautela em pessoas que não falam. É fácil ver um comportamento diferente e assumir o intelecto de alguém baseado em preconceitos. 

Outra coisa pouco falada sobre os autistas de maior demanda de suporte é a saúde mental. Ainda se reproduz que só autistas de nível 1 podem sofrer com depressão por se sentirem diferentes e excluídos, mas isso não é verdade. 

Não podemos continuar reproduzindo que os demais autistas vivem num mundo à parte e que não percebem nada. Ser subestimado a vida toda é um detonador de autoestima muito potente. Precisam sempre ver a pessoa antes de ver comportamento e querer assumir do que a pessoa é capaz. Por isso, um lema bastante seguido dentro do meio da inclusão de pessoas com necessidades complexas de suporte é "presumir competência", ou seja, não partir do pressuposto de que aquela pessoa não sabe de nada. 

Assim como com qualquer pessoa, não temos como saber o que o outro pensa até que ele nos diga, então, até que a pessoa possa fazer isso (de variadas formas), simplesmente não devemos assumir nada. 

Por fim, devo mencionar que autistas nível 2 e 3 são sempre usados como exemplo de que a neurodiversidade é algo ruim e que inclusão não funciona. 

Como autista diagnosticada como nível 2 de suporte, digo "PAREM"! 

Não usem minha existência ou a de nenhum dos meus colegas como desculpa para desdenhar da inclusão. Isso não ajuda em nada. 

Pessoas que dizem isso e supremacistas aspies, a 80 km/h, no final das contas, chegam com a mesma intensidade ao discurso da exclusão. Se lutamos pelo orgulho autista, é para todos os autistas. Se lutamos pela inclusão das PCD, é para todas as PCD! 

Ninguém nunca terá uma vida perfeita e dos sonhos, mas todos que tiverem acesso à ajuda de que realmente precisam para viver suas vidas com certeza terão chances muito maiores de felicidade, autonomia e realização pessoal. 

As famílias precisam ficar menos sobrecarregadas e as pessoas com deficiência precisam ser incluídas e vistas como pessoas dignas. Todas, não só uma parcela que achem melhor. 

Um autista nível 3 de suporte que recomendo seguir é o @murilo_ciclistea (no instagram). Foi só na pandemia, aos 14 anos, que ele conseguiu externalizar seu universo interior. 

Ele tem apraxia da fala e dita textos que a mãe entende e digita em sua preciosa página no Instagram. Antes disso, era fácil assumir que o Murilo não pensava nenhuma dessas coisas tão sensíveis que ele hoje expressa. 

Não é justo excluir Murilos do discurso da neurodiversidade, pois, se ele estivesse rodeado de pessoas que pensassem que a vida dele é algo ruim por causa do autismo, ele nunca teria tido a chance de usar sua voz e dizer quem é o Murilo de verdade, pois só ele tem como saber. 

Ele mesmo diz como produzir seus textos é um enorme alívio a ele. Todo autista merece esse alívio. Ainda há muitos por aí sem essa chance. Não vamos contribuir para isso com o nosso discurso e nossas atitudes, por favor. 

Não é que todo autista vá publicar livros e produzir textos como o Murilo e vários outros, mas precisa haver inclusão independentemente de considerarmos que o que a pessoa tem a oferecer à sociedade é digno ou não.

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