Marina da Silveira Rodrigues Almeida
Consultora em Educação Inclusiva
Psicóloga e Pedagoga especialista
Instituto Inclusão Brasil
A deficiência intelectual é um enorme desafio para a educação na escola regular e para a definição do conceito de apoio educativo especializado, pela própria complexidade que a envolve e pela grande quantidade e variedade de abordagens que podem ser utilizadas para a entender.
Não tem sido possível estabelecer diagnósticos precisos da deficiência intelectual exclusivamente a partir de causas orgânicas, nem tão pouco a partir da avaliação da inteligência: quantidade, supostas categorias ou tipos de inteligência. Tanto as teorias psicológicas desenvolvimentistas, como as de caráter sociológico ou antropológico, apresentam idéias mais ou menos claras a respeito da condição mental das pessoas; todavia, nenhuma dessas perspectivas ou outras, nem todas juntas conseguem definir um conceito único que traduza de forma satisfatória a complexidade da questão da deficiência intelectual.
Em suma, a deficiência intelectual não se esgota na sua condição orgânica e/ou intelectual nem pode ser definida por um único saber. Ela é, como o próprio conceito de pessoa, uma interrogação e um objeto de investigação para todas as áreas do conhecimento.
Esta dificuldade em definir de forma clara o conceito de deficiência intelectual tem tido consequências muito marcadas no modo como as pessoas em geral e as organizações e instituições sociais têm lidado com a deficiência. O medo face à diferença e ao desconhecido é responsável, em grande parte, pela discriminação que a Escola e a Sociedade promoveram relativamente às pessoas com deficiência em geral, mas muito particularmente às pessoas com deficiência mental.
O sociólogo Erving Goffman propôs um conceito, o de “estigmatização”, para descrever esta reação discriminatória perante o que é diferente. Freud, nos seus estudos sobre o Estranho, também explica como os sujeitos evitam aquilo que lhes parece estranho e diferente, sobretudo a partir de questões e problemas pessoais e muito íntimos dos próprios sujeitos. Damásio refere que, na base do medo ou até da fobia face ao diferente, podemos encontrar estruturas cerebrais primitivas que, em tempos muito recuados da história da evolução do ser humano, tiveram alguma utilidade para a sobrevivência da espécie, nomeadamente como recurso para identificação do perigo de perda de território ou de bens de subsistência.
A todo este conjunto de processos e estruturas podemos acrescentar ainda a resistência institucional que contribui para manter e aumentar a discriminação. A escola, por exemplo, - pela sua missão, presa fácil do conservadorismo mais arreigado e dependente de estruturas caducas de gestão de serviços públicos – continua encantada pela idéia elitista de promoção dos melhores alunos, mostrando-se incapaz, pelo pouco de saber que transmite, de os promover socialmente, sem por isso deixar de esmagar aqueles que não respondem aos seus objetivos delirantes.
A agravar esta situação ainda temos de superar as contradições entre culturas profissionais que definem a identidade e o trabalho de cada profissão envolvida no atendimento às pessoas com deficiência. Estas contradições geram corporativismos, práticas isoladas, lutas por melhoria do estatuto social, o que, por seu turno, acarreta formas desarticuladas de intervir na deficiência intectual.
A Escola Regular Perante a Deficiência Intelectual
A deficiência intelectual põe vigorosamente em causa a função primordial que foi atribuída à escola regular, isto é, a produção de conhecimento. O aluno com deficiência intelectual tem uma maneira própria de lidar com o saber que, invariavelmente, não corresponde ao ideal da escola, tal como ainda é concebido pela esmagadora maioria das pessoas.
Em boa verdade, não corresponder ao ideal de escola pode acontecer com qualquer aluno, mas os alunos com deficiência intelectual denunciam a impossibilidade de atingir esse ideal de uma forma, que podemos dizer, tácita. Pura e simplesmente não lhes é possível a eles ou à escola dissimular essa impossibilidade. As outras deficiências não abalam tanto a escola regular, pois não ferem o cerne e o motivo da sua urgente transformação: entender a produção do conhecimento acadêmico como uma conquista individual.
O aluno com deficiência intelectual tem dificuldade em construir os seus conhecimentos como os outros e em demonstrar as suas capacidades cognitivas, principalmente nas escolas que mantêm um modelo conservador de atuação e uma gestão autoritária e centralizadora. As dificuldades dos alunos com deficiência intelectual são um dos indicadores mais rigorosos da falta de qualidade da escola para todos os restantes.
O carácter elitista, meritocrático, homogeneizador e competitivo dessas escolas oprime o professor e o coloca numa situação de isolamento e impotência perante todos os alunos com dificuldades de aprendizagem, incluindo os com deficiência intelectual. Em consequência, a grande maioria dos professores só encontra a solução de os encaminhar para outro lugar ou professor que supostamente saiba como lidar com eles. Esta solução está historicamente tão cristalizada que nem os professores tomam consciência do quanto ela corresponde à sua própria opressão.
Assim, o número de alunos classificados, por psicólogos, médicos e professores, como deficientes mentais tem vindo a aumentar progressivamente, abrangendo todos aqueles que não conseguem tirar um bom proveito da frequência da escola ou que demonstrem dificuldades em respeitar as normas disciplinares que lhes são impostas. A introdução de novas terminologias como a de “necessidades educativas especiais”, embora bem intencionada, contribuiu para aumentar ainda mais a confusão entre casos de deficiência intelectual e aqueles que apenas apresentam problemas na aprendizagem, muitas vezes devido à próprias práticas escolares.
O desconhecimento e a busca de soluções imediatistas para resolver a premência do direito de todos à educação faz com que os administradores da educação e as escolas procurem incessantemente soluções paliativas, que envolvem todo o tipo de adaptações possíveis e até algumas imaginárias: de currículos, de atividades, de avaliação, de atendimento na sala de aula ou fora dela, exclusivamente destinadas a alunos com deficiência. Estas soluções, exclusivas para os alunos com deficiência, continuam a alimentar o carácter substitutivo da Educação Especial, principalmente quando se trata de alunos com deficiência intelectual.
Estas práticas adaptativas funcionam como um regulador externo da aprendizagem e são coerentes com uma perspectiva em que o grande objetivo é determinar “o que falta” ao aluno para ter sucesso. Não sendo possível dar-lhe “o que lhe falta”, desconta-se no rendimento final.
O Futuro da Escola Inclusiva Urge
Numa concepção inclusiva, a adaptação ao conteúdo escolar é realizada pelo próprio aluno e testemunha a sua emancipação intelectual. Esta emancipação é uma consequência do processo de auto-regulação da aprendizagem.
Entender este sentido emancipador da adaptação intelectual é absolutamente indispensável para um professor que não queira oprimir nem ser oprimido pela sua própria ação.
Aprender é uma ação humana criativa, individual, heterogênea e regulada pelo sujeito da aprendizagem, independentemente de a sua condição intelectual ser mais ou ser menos privilegiada. São as diferentes idéias, opiniões e níveis de compreensão que enriquecem o processo escolar e clarificam a postura dos alunos e dos professores face a um certo conteúdo. Esta diversidade resulta das formas singulares de nos adaptarmos cognitivamente a um dado conteúdo e da possibilidade de nos exprimirmos abertamente sobre ele.
Se aprender é uma ação individual, pelo contrário, ensinar é um ato coletivo, no qual se espera que o professor disponibilize a todos os alunos sem excepção um mesmo conhecimento.
Em vez de adaptar e individualizar/diferenciar o ensino para alguns, a escola regular tem de recriar as suas práticas, mudar as suas concepções, rever o seu papel, reconhecendo e valorizando sempre as diferenças, isto é, diferenciando para todos.
As práticas escolares que permitem ao aluno aprender e ver reconhecidos e valorizados os conhecimentos que é capaz de produzir, segundo as suas possibilidades, são próprias de uma escola que se distingue pela diversidade das atividades. O professor, na perspectiva de uma educação inclusiva, não é aquele que “diversifica” para alguns, mas aquele que prepara atividades diversas para os seus alunos ao trabalhar um mesmo conteúdo curricular.
A prática inclusiva é diferente daquelas que habitualmente encontramos nas salas de aula, em que o professor escolhe e determina uma atividade para todos os alunos realizarem individualmente e uniformemente, sendo que aos alunos com deficiência intelectual propõe uma atividade facilitada sobre o mesmo assunto ou até mesmo sobre outro completamente diverso. Por exemplo, enquanto pede a todos os alunos que preencham uma ficha sobre os planetas do sistema solar, o professor propõe ao aluno com deficiência intelectual que pinte um dos planetas numa folha de cartolina. A falta de imaginação do professor não afeta só o aluno com deficiência; de fato prejudica todos os restantes. De outra realidade estaríamos a falar se o professor organizasse um inventário de atividades diversas sobre os planetas do sistema solar – elaboração de textos, construção de maquetes, pesquisas em livros ou revistas, leitura de poesias, organização de um debate – e pedisse aos alunos, incluindo o aluno com deficiência, que se distribuíssem pelas diferentes atividades.
A prática da educação inclusiva exige necessariamente a cooperação entre todos os alunos (o ensino coletivo) e o reconhecimento de que ensinar uma turma é, na verdade, trabalhar com um grande grupo e com todas as possibilidades de o subdividir. Só deste modo, de acordo com as subdivisões do grande grupo, os alunos com deficiência intelectual ou com outras dificuldades de aprendizagem podem participar nas atividades sem terem de formar um grupo à parte.
Para conseguir desenvolver a sua atividade dentro de uma perspectiva de educação inclusiva, o professor precisa receber o apoio de equipes próximas de docentes especializados e de órgãos de gestão que adotem um modelo de administração escolar verdadeiramente democrático e participativo. No atual contexto, é quase um insulto à complexidade dos objetivos da educação inclusiva, defender ou simplesmente insinuar que eles são alcançáveis só pelo esforço isolado das escolas e dos professores, sem o apoio necessário.
Por outro lado, a receptividade à inovação anima todos a criar e a ter liberdade para experimentar alternativas de ensino. Esta autonomia para criar e experimentar coisas novas será naturalmente extensiva aos alunos com e sem deficiência.
Esta liberdade indispensável do professor e dos alunos para criar as melhores condições de ensino e de aprendizagem não dispensa uma boa planificação do trabalho. Ser livre para aprender e ensinar não implica falta de limites e de regras e muito menos a queda no precipício do improviso. Se essas regras e limites se não forem assumidas pelo exercício da liberdade serão impostas pela incapacidade de usufruir dela: não há meios termos neste tipo de opções.
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